A insubordinação da imagem diante do tempo
Lorraine Mendes
Tudo o que sabemos sobre o tempo é uma metáfora. A maneira
como contamos sua passagem em minutos e dias é fruto de uma
convenção e uma tentativa de dar sentido à existência humana a
partir de ciclos. Isso nos leva a alguma possibilidade de futuro e
superação. No tempo linear, o passado é algo que foi superado e
a humanidade caminharia, assim, em direção a algo melhor ou
mais evoluído.
Mas o que fazer quando há uma ruptura de um marco de tempo e
o que é passado se faz presente por meio de um jogo entre
presença e ausência, silêncio e história?
Na narrativa do tempo presente, há quem faça o gesto de retorno
a alguma coisa que ficou por se resolver, por mudar, para dar
lugar àquilo que tem direito.
Na história da arte a pintura serviu para também criar um regime
de visibilidade e representação, mitos fundacionais e marcar a
passagem do tempo: de grandes batalhas, feitos heroicos,
retratos de grandes personalidades à formulação de uma imagem
daqueles que poderiam ser julgados inferiores. Todas essas
imagens ocupam nosso imaginário enquanto corpo social e
fazem com que possamos construir coletivamente uma ideia de
história e pertença.
Jorge Luis Borges nos conta:
O tempo é a substância de que sou feito. O
tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio;
é um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre;
é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.
O tempo, essa grande metáfora, pode ser entendido como
medida que marca a criação humana: o estabelecemos para que
ele nos dê contorno. O artista, de algum modo, é livre desses
limites. Pode subvertê-los e recriar caminhos entre o que passa,
segue, muda, e aquilo que fica. O tempo da pintura, por exemplo,
é sempre outro: enquanto está sendo feita, tempo suspenso;
quando apresentada e celebrada em arquivo, tempo que
permanece.
Há uma geração de artistas comprometidos com a pintura e com
um gesto de fazer ventar e revolver a permanência das coisas.
Nos trabalhos que Bruno Lyfe aqui nos apresenta podemos
perceber, junto às minuciosas camadas de tinta, cor e forma, a
sobreposição de visões, tradições e histórias. O artista faz ventar
modos de representar e criar, de versar sobre presenças e fazer
ver aquilo que sempre esteve ao alcance dos olhos, mas que se
não chamado à frente, segue esquecido pelas narrativas oficiais.
O artista toma para si elementos que formam o cânone da arte
ocidental: a pintura equestre, as narrativas de descobrimento e
feitos das nações do velho mundo, o barroco como a bíblia dos
iletrados, a arquitetura como meio de dominação e organização
das relações humanas. Bruno se apropria dessa herança que
também é sua e a conjuga com um modo seu, e por isso também
nosso, de ver o mundo em que habita.
Junto ao cânone, não no avesso, por entre os cobogós,
atravessando a ideia de ordem e progresso, há uma acidez cítrica
que percorre um caminho por entre os meninos que cavalgam no
lombo de cavalos, entre as rachaduras dos azulejos azuis, entre
mulheres que dançam e contam histórias.
De uma maneira muito própria e sutil Bruno Lyfe nos lembra que
o corpo que trabalha é o que descansa, o que dança é aquele que
também luta, e que, sobretudo, o que parece apenas assistir é o
que faz. Percebamos em suas pinturas os insubordinados
meninos que brincam. É o retrato livre de uma ousadia alegre, de
uma teimosia sutil que desafia a retina. Quando vemos essas
figuras dançando livremente em uma superfície que já tentou os
aprisionar em imagens de subserviência e dominação,
confundimos a ideia de superação do passado e podemos
reformular modos de contar histórias.
Indomáveis, essa figuração salta em direção a uma outra noção
de tempo. Faz ventar e revolver certezas sobre a imagem, sobre
modos de representar que não dão conta da complexidade que é
a vida. O tempo que é metáfora se atualiza como fio e caminho:
Lyfe volta ao passado com momentos do presente, se faz agente
de algo que um dia pode também ser cânone, afirma a
permanência, faz de sua pintura o próprio tempo e brinca, ele
mesmo, por entre narrativas, formas, cores e história.
SEGUIMOS BRINCANDO, 2025
Acrílica e óleo sobre tela Acrylic and oil
on canvas 190 x 139 cm 74.8 x 54.3 in

CENÁRIO, PRESENÇA E VOZ,
2025 Acrílica e óleo sobre tela Acrylic and oil
on canvas 212 x 138 cm 83.46 x 54.33 in

EM SILÊNCIO SENTIDO O QUE NÃO FOI DITO,
2025 Acrílica e óleo sobre tela Acrylic and oil
on canvas 192 x 140 cm 75.6 x 55.1 in

ESTAMOS AQUI, COMO QUEM GUARDA O QUE AINDA RESTA,
2025 Acrílica e óleo sobre tela Acrylic and oil
on canvas 182 x 139 cm 71.6 x 54.7 in

A MARGEM NÃO ALCANÇA O QUE SALTA,
2025 Acrílica e óleo sobre tela Acrylic and oil on canvas 250 x 180 cm 98.4 x 70.9 in

ANJOS,
2025 Acrílica e óleo sobre tela Acrylic and oil
on canvas 138 x 107 cm 54.3 x 42.1 in

DANÇA,
2025 Acrílica e óleo sobre tela Acrylic and oil
on canvas 138 x 107 cm 54.3 x 42.1 in

CAVALGAR CONTRA A HISTÓRIA PARA NÃO SUMIR COM ELA,
A 2025 Acrílica e óleo sobre tela Acrylic and oil
on canvas 160 x 220 cm 63 x 86.6 in












